quarta-feira, 28 de dezembro de 2011


acho essência
na minha vivência:
reminiscência.

Avessa ( o )


Parecia que aquela seria mais uma das noites em que se vai dormir com quase quatro mil coisas na cabeça. Deitei-me ainda cedo, com o objetivo que o sono fosse mais proveitoso do que enfrentar a madrugada fria.
Aquilo já era de costume, os sons dos carros e motos na avenida invadindo o meu quarto me embalavam e me faziam companhia. As luzes penetravam inquietas pelas grades da janela, fazendo com que minha escuridão fosse menor. Todo aquele barulho me fazia sentir mais em casa do que se eu estivesse no silêncio de mim. Talvez fosse medo; ou covardia. Mas é que depois de tantas feridas o corpo quer é sossego. Mesmo que eu fosse covarde e me tendesse para as pessoas, aquilo era muito mais forte, era conforto.
Mas não importava o meu conforto; as feridas ainda estavam lá, mesmo que não ousasse nem pronunciá-las. Ignorei. Segurei o ar com uma das mãos, e movi a outra misteriosamente, como se não soubesse onde fosse parar, até que as duas se encontraram e se visitaram por dentro. Meu próprio calor me aquecia, o corpo se repartia em dois, transformando a solidão em duas, que se ligavam. Que fosse só um disfarce, não importava.
Quando criei coragem para fechar os olhos e ver todos aqueles pesos, e minhas pálpebras começaram a se fechar na mesma lentidão do pôr do sol, com todos os raios indo embora, o corpo se preparando para a noite, a vida recuando como se tivesse medo, nada veio. Eu até me assustei, mas já cansada, achei agradável e afundei na cama com o a força de um lutador.
Foi quando ela entrou. A porta do quarto se abriu devagar, e embora nenhum feixe de luz a acompanhasse, via sua silhueta claramente. Eu poderia falar que fiquei com medo, mas a verdade é que eu não reconhecia perigo em uma companhia para a noite. Mesmo que fosse estrangeira; eu não poderia saber o motivo de temer aquilo, era estranho demais para mim.
Meus olhos no começo se arregalaram; mas logo foram se fechando, à medida que ela ia chegando mais perto, e era tudo tão devagar que parecia ter todo tempo do mundo. Ao contrário dos dias corridos que se passavam em sufoco, naquela noite os acontecimentos foram se entrelaçando de maneira tão lenta, que era possível ver e sentir todos os fios soltos, e todos os fios que se uniam na construção do que agora narro nesse conto póstumo. Póstumo sim, pois alguma coisa morreu aquela noite.
Meus lençóis eram brancos, mas eu juro que acordaram vermelhos. Não me lembro em momento algum de haver sangue; nem dor. Pelo contrário, era uma paz tão grande que eu fechei mesmo os olhos- mas tenho certeza que não dormi, pois os abria sempre – e até comecei a gargalhar de prazer com aquela coisa se movendo em meu quarto.
A sombra dançava; os pés esticavam e encurvavam; tinha a habilidade de uma bailarina. Não me lembro que roupa usava, e nem se usava. Mas ela veio e se sentou ao meu lado. Agarrou minhas mãos, e as segurou assim como estavam: juntas. E sem falar nada, veio me pegando, me passando, me aninhando, com o mesmo calor do ventre materno e o mesmo prazer das mais fieis ou infiéis amantes.
Eu não pensei muito aquela noite. Na verdade não pensei nada. Por isso não tive medo da respiração pesada no meu ouvido, das mãos que me rodeavam. E não deveria mesmo ter. Era tudo o que eu esperava, meu avesso estava ali: e me segurando, apalpou meus arranhões, minhas marcas, meus vermelhões, roxos e tudo mais que um dia houvera me ferido .
Só sentia minhas gargalhadas agora. Gargalhávamos juntas. Aquela sombra e eu. Rindo alto da vida que passava, do tempo indecoroso, das ruas inacessíveis, das roupas desnecessárias... era tudo e muito mais. Era eu, e o avesso. A avessa.
Não me lembro quando dormi, e nem sei mesmo se dormi. Sei que quando abri os olhos, estava sozinha de novo. Mas já não me sentia assim. Era como se ela ainda estivesse ali, comigo, como se tivesse se tornado parte de mim. Não; já era parte de mim antes. Eu só a achei.
E no riso fugido da noite, eu acordei ainda com os dentes de fora. A sensação de luto me tomava ao mesmo tempo em que o sol raiava forte. Nunca soube o que morreu aquela noite, e nunca nem procurei saber. Só sei que se perderam na sua inutilidade todas as quatro mil coisas, e eu tinha lençóis novos.

abraço
               sem espaço
                                       façamos um laço

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

" Eu havia de pedir desculpas sobre a esperança. Olhares que pesavam malvas. Esterco fumegante. O sangue escuro como um corte ácido no vaso de uma rês. Tudo me pertubava. E mais abaixo, sobre o estrado da cama, aquele cheiro de sol na boca atormentada de uma fêmea. "