segunda-feira, 17 de setembro de 2012

iogurte


  Bunda. As duas bandas no banco. Mulher moderna, a bunda era dela, e só. Cabia a ela decidir o que vazia; se dava, se vestia; se mostrava. Aquela bunda, na calça, no banco. Centro da cidade, horário de pico, hora do rush, conhecido também como as malditas seis da tarde. Inferno contemporâneo quando todas as pessoas querem chegar ao mesmo tempo em casa, e como há de ser percebido, com cada vez mais pressa.
Mas ela não. Fingia calma e serena, não escutar as buzinas, ônibus, crianças saindo suadas e agitadas das escolas. Sentada estava, em plena quarta feira, num banquinho singelo do parque municipal. Toda aquela delicadeza quase sutil- ou melhor- despercebida mesmo por quem passava nas latas de gente aglomerada dentro.
  A blusa branca solta iluminava-se por uma fita leve que passava na cintura. Fita vermelha, que por ou sem querer, combinava-se audaciosamente com o all star, também vermelho, e ainda mais vibrante, por ter sido comprado há pouco.
  Sim, é que nossa personagem não é muito de esperar. Talvez contaminada pelo espírito do mundo pós moderno, mal põe a mão nas coisas quer usar, gastar, mostrar. Desenvolvimento sustentável sim, para as sacolinhas plásticas.
  Ajeitando o sutiã com a mão esquerda percebia que ele a incomodava. Maldita lingerie nova! Mal esperava para chegar a casa e dar a desejada liberdade aos seios. Já diria Mariana Colasanti, poetiza suntuosa: “tirar o sutiã à noite quando o dia acaba e com ele o dever dos rijos seios”. Com o incômodo, fechou o livro bruscamente – se cansou da filosofia. Pensou em ir ao cinema mais tarde ver algum bom filme, mas logo sentiu uma vontade enorme de chegar a casa e ver  a novela das nove, colocar os pés pro alto e ir dormir junto com tantos outros brasileiros.
  Enquanto se via surpreendida pelo próprio pensamento inútil, ia guardando o livro na bolsa. Bolsa grande, cheia de coisas variadas, papéis, notas fiscais de compras do mês passado. Batons de todos os tons, um rímel aqui, uma conta ali, umas moedas soltas, papel de comida, que mulher versátil, um iogurte. Um iogurte?
  Por mais estranho que pudesse parecer, tinha sim, um iogurte na bolsa preta. Parecia bom e ainda fresco. De súbito, lembrou que não comia desde o almoço, o que afastou qualquer desconfiança acerca da origem do laticínio.
  Destampou o pote, e aquele alumínio rosado a lembrou da infância. Há tempos não tinha uma lembrança tão verdadeira... Como quando sua mãe comprava bandejas coloridas, ainda suadas da geladeira do supermercado.
  E o pote de iogurte se transformou; o líquido ganhou o mesmo sabor da infância, a mesma doçura das tardes depois da escola. Mas o pote agora, parecia pequeno. A mulher de hoje não é mais aquela menina. A mulher agora tem a hora do rush e é dona da própria bunda. Assim, o líquido finda, mas a sede se mantêm.
  Aborrecida, deixa o pote de lado. Mas quando está prestes a pegar o celular, avista uma coisa que jamais seria esquecida na infância. As bordas do pote a convidavam para a parte mais deliciosa de todas. Como poderia ter se esquecido?
  Não tinha colher. Ela olhou pros lados, nada, nenhuma padaria aberta à vista. Crianças invadiam o parque acompanhadas por seus pais. Não tinha colher. Alguns homens de terno passavam. E o liquido ali, na borda; rosada a parte mais gostosa...não tinha colher!
  Colocar os dedos como quando criança? Mas não era mais a mesma ...talvez se tentasse alcançar o iogurte com a ponta da língua...não, isso seria ainda mais ridículo e por experiências prévias e infantis, sabia que não daria certo.
  E ela, que não tinha paciência para esperar as coisas, encontrava-se em uma humilde decisão. Completamente alienada se via a mercê daquela situação. O tempo parado, a cabeça latente, odiava perder o controle. Controle e
  O pote. Esperava. Aquele dia quase corrupto. A falta ao trabalho, a reunião desmarcada com o ex marido, a proposta de um livro ao lado. Mesmo que fuga, tudo dentro dos planos. Não o pote.
  Os dedos deslizaram rápido, ela agitada pela situação incômoda, o líquido na língua. Garganta. Estômago. Quase pode sentir o órgão agradecer, aliás, o corpo todo. Foi quando, abrindo os olhos, ela se sentia, novamente, dentro do mundo. Inteira, e não pela metade.