quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Ana C.


          Entrei na padaria, por volta das nove da manhã, bem entre a pequena pausa entre uma matéria e outra, mas dessa vez ainda pensando que eu não havia concluído a primeira e até a última hora do dia eu deveria enviar três notícias para a redação o que se somava a nenhuma ideia de que forma trabalhar o fato de que uma mulher perdeu o filho afogado na praia que não tinha salva-vidas por falta de verba governamental. Enfim, como sempre entrei na padaria, algo me remeteu a outras tantas notícias que já tinha escrito até ali, desta vez foram as janelas tortas, o vermelho do ketchup, os cigarros entre os dedos daqueles que fumavam enquanto tomavam o sagrado café da manhã. Naquela época as pessoas ainda podiam fumar dentro dos lugares, o que era a coisa mais comum e óbvia. Mas quando entrei na padaria o que me chamou de fato a atenção depois desses milésimos de segundos de curta duração que minha percepção geral acerca do ambiente daquela manhã conseguira apurar foi um papel branco, bem dobrado, mas que alguém claramente tentara amassar.
         Fui até o freezer, peguei uma bebida e me dirigi ao balcão. Sentei-me não muito longe do papel que reluzia na bancada de metal. Um pão com queijo, por favor, a mulher estava na cozinha, vai querer pão de sal mesmo? - ela disse se virando quando percebeu que se tratava do mesmo pedido que ela recebia quase todas as manhãs por anos - ah é você seu Gabriel! Me desculpa hoje não sei o que me deu que estou cá com a cabeça nas nuvens, até o seu Manoel já me deu um berro e olha que eu fui funcionária do mês hein seu Gabriel - aí já me deixei distrair, enquanto ela falava do filho que tinha finalmente passado no  vestibular e agora ia estudar e crescer na vida. Já estava acostumada, sabia que eu sempre a ouvia, ainda mais agora, confortado por saber que meu pedido não seria confundido nem atrasado, o queijo estaria no ponto exato de derretimento com o pão escolhido a dedo e apenas uma passada de manteiga.
         Enquanto ela se virava para fazer o pão com manteiga me peguei olhando-a por trás. Tentei me desviar para o bilhete que de fato ainda me atordoava, mas algo me incomodava naquela mulher que há mais ou menos cinco anos eu olhava todos os dias, aquela mulher de meia idade já mãe de três filhos e até um pouco gorda, eu nunca havia reparado em suas coxas firmes provavelmente bem trabalhadas pelo serviço doméstico, e a bunda grande começando já onde se amarrava o avental, porque nunca a havia reparado, era até bem formada, as formas assentavam com os olhos grandes e pretos. Enquanto imaginava também seus peitos agora escondidos pelo avental me vinha à cabeça uma coisa bem excêntrica, mas eu nem queria mesmo olhar, e não é mesmo assim às vezes nos pegamos pensando asneiras apesar de não serem mais que humanas minhas asneiras e até estavam bem escondidas onde eu gostava de guardá-las, onde ninguém podia ver, enquanto os seios suavam no calor do fogão, ela se soprava, inclinava o queixo devagar para o decote e fazia um bico de leve sem que ninguém percebesse, exceto eu enquanto esperava meu pão, meu queijo, feitos pelas mesmas mãos que agora juntavam os cabelos - como está quente hoje hein seu Gabriel- respondi que sim Lia, há tanto tempo não faz calor assim aqui, minhas mãos também suavam tirei-as do balcão limpei na calça, as marcas no metal suado, limpei, disfarcei, ela voltava com o prato, meu café da manhã de todo dia ela se inclinou um pouco para servir, desviei o olhar da pele, cai no bilhete branco.
         Lia não tinha percebido que alguém deixava um bilhete? Justo ela tão atenciosa, tão maternal com aquele lugar e as pessoas que ali todos os dias passavam e esquentavam as cadeiras, o barulho do caixa meio enguiçado a moça do caixa - cada semana uma diferente, pois sempre alguém roubava algo- batia para soltar, contava o dinheiro, as moedas caiam nos bolsos vazios, nas bolsas grandes, assim como eu agora cai nos seios de Lia e cairia também no papel branco. Puxei com força e sem ninguém ver, coloquei-o eu meu bolso. Pouco antes de terminar o pão, peguei o papel e li os períodos mais curtos da minha vida, com uma letra até bem comum: “Fui embora Bruno, não me procure. É impossível viver assim. Ana C.”.
         Quando li aquelas palavras duras percebi que elas pareciam ainda mais poucas quando o branco do papel se assemelhava ao vazio que senti lendo-as, quanto tempo demoraria até que elas crescessem e ocupassem todo o papel, de forma que Bruno não aguentasse mais e jogasse tudo fora, roupa bolsa mala pente cd livro carta telefone escova de dente toalha fronha do travesseiro com cheiro, talvez todo o resto da roupa de cama. As palavras ressoavam em minha mente “não me procure mais não me procure mais não me procure mais não me procure mais”... como se fossem infindas, como se decretassem todo o fim das coisas.
         -seu Gabriel, vai querer o cafezinho pra levar? Escondi o bilhete branco rapidamente e assustado respondi que sim, foi então que Lia soltou uma - é seu Gabriel, o senhor também tá avoado hoje né? Preocupa não que é o tempo - eu nem concordei nem mexi, eu fiquei me perguntando que dia mais inóspito para se deixar alguém, um dia quente desses de ter que sair de casa pra aliviar o mormaço.
Pensava em Ana C. Pensava em Bruno. Pensava na minha ex mulher, quando eu a deixei e simplesmente sai. Nunca passou pela minha cabeça deixar um bilhete nem nunca consegui tamanha sinceridade. Ana C. de fato deveria ser uma pessoa muito sincera, talvez esse tal de Bruno fosse mesmo um bundão ou quem sabe, sei que as palavras continuavam, e havia um ritmo dentro de mim que repetia não me procure mais, como já ouvi tantas vezes na vida, tenho trauma dessa frase, pensei enquanto catava as migalhas de pão no prato, tenho trauma dessas pessoas que se vão e de como eu também posso ser uma delas, de como eu também posso senti-las aqui.
           Desde então passei os dias procurando Ana C. pelas ruas, e toda vez que via uma moça parada no ponto esperando o ônibus, ou na praia admirando o pôr do sol, na verdade todas as moças sozinhas, eu via Ana C.. Procurar Ana fez transfigurar em mim uma obsessão, mais do que olhar agora para os peitos de Lia todos os dias e repensar e repensar em porque continuava a fazê-lo se eles eram tortos, sem encontrar nunca uma resposta, também procurava Ana C. em todas as moças do Rio e as descobria sozinhas. Me dava um aperto no peito como se a solidão fosse mesmo algo tão assustador e tão indesejável. As moças que saiam das boates, depois de vários shows já perdidas sem os seus cheiros, cheiravam a suor e a uma grande mistura de perfumes masculinos, eram tão sozinhas, será que Ana C. cheirava assim. E isso continuava como continuou por tanto tempo, mesmo quando estava com outras mulheres, quando esses meus conflitos eram jorrados em todas elas, algumas engoliam sem medo todas as minhas inquietações pulsantes e eu as admirava pela coragem de tantas vezes se deixarem amar tão fácil, o que até conferia certa leveza ao peso que tinha para mim a palavra amor.
         Menores sentimentos ou não, conferi a Ana C. uma significância que transbordava atordoadamente todos os meus sentidos. Os mesmos sentidos que amavam Ana C. olhavam para Lia, escreviam matérias sobre imposto de renda e até transitavam por mim enquanto eu transava com a vizinha antes do trabalho dela, antes do meu.
         Com o tempo a memória foi me esquecendo. Me perdi; como uma criança, o meu ontem, hoje e amanhã causava estranhamento nas pessoas. Mas para mim tudo parecia estar perfeitamente ordenado. Exceto quando esquecia onde havia deixado o bilhete de Ana C. que eu ainda guardava. Como a memória poderia ter me esquecido tão bem! O bilhete sempre estava no bolso esquerdo frontal da calça. Ela sempre esteve lá.
         Ontem fui à padaria. Lia não trabalha mais lá; descobri anos depois que tinha câncer de mama, e por isso seus seios eram tortos - o médico era ruim, era tudo o que Lia podia pagar e ele cagou o serviço- me contou a moça do caixa, agora já uma senhora, no mesmo dia em que Lia morreu. A moça não prosseguiu no trabalho porque era honesta; o padeiro confessou-me que a apanhou roubando um par de vezes, mas desistiu de puni-la, pois já perdera a paciência com gente jovem. Acreditei na hora, mas mais tarde figurei o verdadeiro estímulo do emprego da moça. Vi o padeiro saindo dá área de serviço, o cinto arriado, ela voltando para o balcão, passava batom.
         Quando eu pagava o café, a mulher do caixa me deu um sorriso e disse que iria se casar na semana que vem, antes de eu esboçar qualquer reação, ela se adiantou - mas não pensa que eu era encalhada não viu seu Gabriel? Arrumei noivo cedo. É que o danado do Bruno estava esperando a mãe dele voltar depois de uma briga que eles tiveram há anos. Ela era meio doida sabe? Como ela nunca mais voltou, eu falei que se ele não casasse de vez eu ia embora - olhei assustado para ela quando ela me disse ainda- se a mãe dele é cabeça dura eu também sou, deve ser coisa de nome mesmo.
         Hoje vim para casa pensando que o nome da caixa era Ana, me lembro pelo crachá que ela pôs só pra mim; assim não ficaria constrangido caso me deslembrasse. Não sei bem por que, mas esse nome me remete a alguma coisa. Onde está aquele papel que sempre procuro...?
         É que ontem entrei na padaria, por volta das nove da manhã, bem entre a pequena pausa entre uma matéria e outra, mas dessa vez ainda pensando que não conclui a primeira e até a última hora do dia eu tinha que enviar três notícias para a redação o que se somava à nenhuma ideia de como trabalhar o fato de que uma mulher perdeu o filho ...

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Sofia


Os sapos coaxavam; e nela, como um delírio, uma vibração: uma sobrevivência.

Esta é a história de uma sobrevivente. Quanto aquilo começou a importar mais que a própria vida.
- Está é vendo o tempo né Sofia? - uma voz soou confortavelmente melódica
Poucos sabiam, é que era difícil de falar. Como um suspiro - mas ficaria obvio para qualquer um que passasse por ela que o que se precisava naquele terreno, há muito infértil e talvez até meio esquecido, era um grito- um ar.
Desde que nasceu empenhou-se em uma construção perfeitamente simétrica dentro de si: foi erguendo compartimentos, separando sentimentos, guardando alguns pensamentos em um estoque puramente intelectual. Cada vez mais segmentada, já não havia mais princípios para separar: apenas trabalhava duro para organizar-se. Também segurava todas as paredes o tempo todo, pois estamos sempre suscetíveis a abalos, - dizia ela a si mesma - e qualquer terremoto era fortemente abafado por algum novo tipo de lógica.
À primeira vista, chegavam a ser afáveis suas microcasinhas, com todas as suas coisinhas dispostas e trancadas. A esse universo, dava o nome de intimidade. Com o tempo, passou a se chamar universo interior. Tão universal que ali crescia, cada vez mais. Sozinha. Às vezes, sim, noutras não. Ficava por ali horas; uma vez passaram-se dias. Tirava férias ali mesmo. Não por ser mais confortável, mas por parecer, digamos, mais profundo. E nem sequer parava para pensar na volta; ia ficando, ficando, ficando...
Por vezes tentava acelerar as ideias e ganhar tempo. Inútil. Gastava energia e perdia ar. Mas no mundo dela, o tempo era um só. Apesar de fragmentar o tempo do real, tentando organizar também o mundo além de si, o tempo do seu universo era apenas um. E por isso, não passava. Estendia-se. A isso, Sofia também deu um nome: fluxo.
Nós, humanos, tão perfeitamente enquadrados em nomenclaturas pequenas e vazias não percebemos nossa incapacidade de definir aquilo que somos, não é? Assim, alguns dariam um nome ao que ela faz: egoísmo... Não fosse o desespero.
Mas, tanto eu, narrador e cá detentor de parte da história, como você leitor e ai detentor de outra parte desta aventura, não sabemos o que era isso que nossa personagem tentava fazer. Assim como também ela, detentora de tudo, e ao mesmo tempo de nada, nadava sem chegar à praia.
A situação, já envolta nesta “turbulenta” confusão, começava a piorar. É que Sofia começara a identificar sua própria confusão. Ao se ver sem saídas, tentava agarrar-se cada vez mais as paredes. As paredes de suas construções caiam cada diz mais; por vezes, aprendera a gostar disto. Entretanto, muitas vezes desesperou-se. Tinha medo. Passando pelos seus corredores, ao que tentava sair dali, não conseguia; não conseguiria. Era algo tão maior que ela que chegava a engoli-la. Quase era digerida.
Para isto inventou artifícios: dava voltas e conseguia se salvar. Mas Sofia perdia-se, perdia-se, perdia-se... ela mesma assumia. Não percebia que perder-se é tão incrível que quem de fato se perde, não sabe que se perdeu.
Por ora, andava sentindo muita dor. Dor desta coisa maior que todo mundo tem e que se não toma cuidado, faz estrago. Tinha necessidades: produzir, ser, estar... soltava estes infinitos infinitivos aos que aproximavam-se... ah Sofia, quando vai aprender que estas nomenclaturas são tão inúteis quanto suas paredes?
O mais engraçado é que não cumpria com nenhuma delas! Ser, estar... lacunas preenchidas apenas por palavras...E o tempo no mundo real já passava. Os tempos confundiam-se, ela já não sabia separá-los; era cedo ou tarde? Talvez fosse agora.
-é vô. Mas já estou indo pra dentro
Quando percebeu, o avô tinha passado, a hora da janta tinha acabado. Seu estômago roncava e todos na casa já dormiam.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

iogurte


  Bunda. As duas bandas no banco. Mulher moderna, a bunda era dela, e só. Cabia a ela decidir o que vazia; se dava, se vestia; se mostrava. Aquela bunda, na calça, no banco. Centro da cidade, horário de pico, hora do rush, conhecido também como as malditas seis da tarde. Inferno contemporâneo quando todas as pessoas querem chegar ao mesmo tempo em casa, e como há de ser percebido, com cada vez mais pressa.
Mas ela não. Fingia calma e serena, não escutar as buzinas, ônibus, crianças saindo suadas e agitadas das escolas. Sentada estava, em plena quarta feira, num banquinho singelo do parque municipal. Toda aquela delicadeza quase sutil- ou melhor- despercebida mesmo por quem passava nas latas de gente aglomerada dentro.
  A blusa branca solta iluminava-se por uma fita leve que passava na cintura. Fita vermelha, que por ou sem querer, combinava-se audaciosamente com o all star, também vermelho, e ainda mais vibrante, por ter sido comprado há pouco.
  Sim, é que nossa personagem não é muito de esperar. Talvez contaminada pelo espírito do mundo pós moderno, mal põe a mão nas coisas quer usar, gastar, mostrar. Desenvolvimento sustentável sim, para as sacolinhas plásticas.
  Ajeitando o sutiã com a mão esquerda percebia que ele a incomodava. Maldita lingerie nova! Mal esperava para chegar a casa e dar a desejada liberdade aos seios. Já diria Mariana Colasanti, poetiza suntuosa: “tirar o sutiã à noite quando o dia acaba e com ele o dever dos rijos seios”. Com o incômodo, fechou o livro bruscamente – se cansou da filosofia. Pensou em ir ao cinema mais tarde ver algum bom filme, mas logo sentiu uma vontade enorme de chegar a casa e ver  a novela das nove, colocar os pés pro alto e ir dormir junto com tantos outros brasileiros.
  Enquanto se via surpreendida pelo próprio pensamento inútil, ia guardando o livro na bolsa. Bolsa grande, cheia de coisas variadas, papéis, notas fiscais de compras do mês passado. Batons de todos os tons, um rímel aqui, uma conta ali, umas moedas soltas, papel de comida, que mulher versátil, um iogurte. Um iogurte?
  Por mais estranho que pudesse parecer, tinha sim, um iogurte na bolsa preta. Parecia bom e ainda fresco. De súbito, lembrou que não comia desde o almoço, o que afastou qualquer desconfiança acerca da origem do laticínio.
  Destampou o pote, e aquele alumínio rosado a lembrou da infância. Há tempos não tinha uma lembrança tão verdadeira... Como quando sua mãe comprava bandejas coloridas, ainda suadas da geladeira do supermercado.
  E o pote de iogurte se transformou; o líquido ganhou o mesmo sabor da infância, a mesma doçura das tardes depois da escola. Mas o pote agora, parecia pequeno. A mulher de hoje não é mais aquela menina. A mulher agora tem a hora do rush e é dona da própria bunda. Assim, o líquido finda, mas a sede se mantêm.
  Aborrecida, deixa o pote de lado. Mas quando está prestes a pegar o celular, avista uma coisa que jamais seria esquecida na infância. As bordas do pote a convidavam para a parte mais deliciosa de todas. Como poderia ter se esquecido?
  Não tinha colher. Ela olhou pros lados, nada, nenhuma padaria aberta à vista. Crianças invadiam o parque acompanhadas por seus pais. Não tinha colher. Alguns homens de terno passavam. E o liquido ali, na borda; rosada a parte mais gostosa...não tinha colher!
  Colocar os dedos como quando criança? Mas não era mais a mesma ...talvez se tentasse alcançar o iogurte com a ponta da língua...não, isso seria ainda mais ridículo e por experiências prévias e infantis, sabia que não daria certo.
  E ela, que não tinha paciência para esperar as coisas, encontrava-se em uma humilde decisão. Completamente alienada se via a mercê daquela situação. O tempo parado, a cabeça latente, odiava perder o controle. Controle e
  O pote. Esperava. Aquele dia quase corrupto. A falta ao trabalho, a reunião desmarcada com o ex marido, a proposta de um livro ao lado. Mesmo que fuga, tudo dentro dos planos. Não o pote.
  Os dedos deslizaram rápido, ela agitada pela situação incômoda, o líquido na língua. Garganta. Estômago. Quase pode sentir o órgão agradecer, aliás, o corpo todo. Foi quando, abrindo os olhos, ela se sentia, novamente, dentro do mundo. Inteira, e não pela metade.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

eu tenho tudo, tudo na língua

 Descamando a poesia minha língua segue. Sinto o grande músculo úmido passar pelas escamas da palavra. Minha língua é sensível e me revela detalhes sobre essas frases que nenhuma outra parte do corpo me revelaria. Ela é sonora: me conta a palavra, me canta a música e decifra a memória.
  Movendo-a lentamente passo por tudo, desde as superfícies brancas até os subúrbios obscuros...passo por regiões quentes e outras mais frias; por pessoas gentes e outras mais vazias; por durezas e coisas macias...sigo. Na poesia não há ninguém que não escreva e ninguém que não escute. O ruído dos versos é ensurdecedor...eles pedem tudo, tudo. Na poesia não há ninguém que não invente e ninguém que não travessia: e caminhos tem aos montes, dentre versos e rimas, existem as pontes...
  - mas o que tanto escreve mulher?
  - eu escrevo o que eu tenho invento o que eu não tenho e num começo dou um pulo e um suspiro de alívio: estou viva, e respiro.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

eu não gosto de cheios

órgãos completos 

lacunas preenchidas

eu gosto de dúvidas

conflitos e aberturas

do buraco no escudo

de quando a armadura falha

e a arma não dispara

eu gosto de quando o tiro não acerta

e o alvo foge

gosto daquilo que se esconde

e finge não existir

é nas miudezas que me encontro

nas sarjetas de insuficiências

nos descartes

é o menor que me desproporciona

meu olhar é para baixo

pra raiz

que é na semente

que as grandes árvores frutificam.


Te gosto

pelos vazios e 

solidões. 

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Busco-me em escanteios

o que mais tem em mim é esquina:

não há caminho que não se cruze.

terça-feira, 10 de abril de 2012

relações íntimas


Jacarandá estava sozinho à tarde
e falou assim em língua escrita
que amor
essa coisa esquisita
só pode acontecer
se a gente consegue sentir o gosto da luz
quando o sol pousa devagar
e as borboletas que voam ao redor
parecem flutuar

sexta-feira, 30 de março de 2012

Cem batimentos por ora


Vem. Mas vem depressa. Tenho desejo e o desejo é a pressa da vontade.

Senta. Mas faça como se a casa fosse sua, tire as botas, desarrume os lençóis, beba leite no bico.

Beba leite. Meu leite. Mas se lambuze.

Depois deita. Deita em mim. Agora.

Entra, a porta está aberta.

Afinal é para isso que fomos feitas não? Parte de nós está em uma espera corrente.

É quase uma invasão. Mas pode vir. Meu ventre está maduro agora. Meu útero, o mesmo de onde eu tiro
forças para lhe dizer tudo isso, dói, lateja, mas se prepara. A dor é a perda de um preparo.

Doem em mim muitas coisas. Mas pode vir, deita em mim, que meu útero espera sempre.

E eu espero agora ser fecundada pela palavra;

Quero gozar na poesia

Tirá-la do meu útero

E menstruar na frase.

Sangue,
Gozo
E prazer:

todos
poéticos.

(é nas sutilezas que sou mulher)

quinta-feira, 29 de março de 2012


Seus passos
desgraçados
Deixam pegadas
E vão

Mas são passos
Degradados
Por já terem tocado o chão

E nesses passeios
Seus pés fazem questão de pisar
Em todos aqueles meus anseios
Que seus seios não souberam consolar

Mas que passem seus passos então
No final tudo passa
E só fica o chão.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Camomila


Quando a gente e encontrava quase que dava pra ouvir a explosão. Você me tocava forte e eu dizia não, não. Mas você parecia que nem queria me ouvir, e ficava assim, debochando do meu não, e eu caindo no seu sim. Era um jogo doce que você fazia comigo. E eu jogava.
Aquilo que eu nunca soube explicar já durava pra lá de Abril. Por vezes me peguei procurando entender em que tempo tudo se encaixava. Mas não, a gente era pra mais do tempo. Tanto era que eu ficava meio assim sem rumo quando te via. Você olhando as estrelas, como quem não quer nada, enquanto eu te laçava as mãos, e íamos assim, caminho sem volta, pela orla de uma praia qualquer.
Era gostoso o som que você fazia depois de me beijar. E enquanto eu te beijava dava pra sentir sua respiração na minha. Não sei se eram os cabelos, o cheiro, ou o quê. Não sei. Sei que você me arrepiava, e eu olhando você entrar na água azul, assim, as ondas quebrando nos seus joelhos, o sol queimando seus cabelos (que ficavam cada vez mais loiros), eu te vendo com dificuldade já, você nadando mais que sereia... Eu cruzava os braços, segurando aquele seu vestido branco de renda, os bordados eu sabia de cor.
Eu te olhava não conseguindo imaginar nada que importasse mais na vida que aquilo. Talvez a vida fosse aquilo mesmo. Seja assim, esse tudo...mas curto suspiro. Você gritava, vem,vem! Eu ali, naquele suspiro. Você ali, naquele respiro.
Encontrávamo-nus e eu tentava te tirar tudo de uma só vez.  Você com o sorriso habitual de tranquila... ar de feliz. Ria por baixo dos lençóis, fazia sinais de abraço, escondia o rosto, corria pela casa sem as roupas e com as janelas abertas.
É que você parecia mesmo não ter medo da vida. Era tudo parte de um grande mundo, que te aguardava. E você, paciente.
Mas quando a gente se encontrava era explosão. Eu via as faíscas ralando em mim. Você nem ligava. Aquele olhar brando... Era tudo tão inquieto... instável...que até parecia amor.
Às vezes eu abraçava seu travesseiro só pra sentir seu cheiro de camomila.
-Você me ama?
-É claro.
- De verdade?
-Não.
...
-Amo de sonho mesmo.

Calafrios poetizados


Desfio a palavra
Com a facilidade
De quem faz um filho.
Atonalidade:
fecundo o verbo
e
 ARREPIO

A palavra veio ontem
Acontece hoje
E suspira amanhã

sábado, 3 de março de 2012

Revista Samizdat

Olá!
Então gente, mais uma vez, vou postar um link pra vocês. Um texto meu texto saiu em uma revista, e além dele, tem vários outros textos legais. Acessem, leiam e compartilhem por ai!

Abraço,
Sara Meynard.

p.s.: estou adorando os comentários aqui no blog :)

http://pt.scribd.com/doc/82903691/SAMIZDAT-32 (meu texto está nas páginas 35 e 36)

sexta-feira, 2 de março de 2012

Felicidade
vem e me invade
em plena segunda feira

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Extrínseco

Depois daquele dia eu confesso que se acentuou em mim aquela mania de abrir gavetas sem ter o que colocar, e eu sentia aquela fome aguda, aquela fome que não é vontade de comida, mas um vazio, a fraqueza que fica na gente depois de dias sem comer. E para ralar um pouco as minhas vontades eu andava pelas ruas, sempre movida a lembranças, mantendo meu olhar profundo, meu olhar me fecundava, e junto com ele aquele emaranhado de fantasias que eu necessitava, era uma necessidade de viver na invenção, eu sentia um prazer íntimo em montar fantasias que me sustentassem enquanto eu percorria cambaleante essa tal de realidade que insistia em aparecer.

Realidade ou não eu olhava para ela como se admirasse algo que estivesse muito além dali, daquele lugar. Eu não a deixava perceber o conforto que seu rosto esculpido de uma forma proporcional me trazia. Eu não a deixava perceber, mas também admirava em extremo segredo suas mãos e pés (era como uma coisa proibida). Eles também eram incrivelmente proporcionais, aliás, o corpo todo era um equilíbrio onde até as unhas se combinavam. Os pés e as mãos se comunicavam, e o corpo todo na verdade, eles me chamavam, sim, sempre tive uma admiração por extremidades, e aqueles pés pareciam muito macios, eram pequenos e se mexiam no lençol azul, aquele lençol azul que me dava uma paz, ela não sabia, mas eu adorava naquele instante, exatamente naquele instante, o jeito que ela me olhava assim por cima, deitada ali, virada para mim.
Era o fim de uma tarde de inverno e eu começava a sentir os meus pêlos se arrepiando, meu corpo reclamava do frio que fazia. Eu queria mesmo era um carinho, um aconchego, um conforto. Mas ela só me olhava e falava. Ela estava ali, deitada ao meu lado, com os lençóis azuis, o dia ficando alaranjado com o pôr do sol, seus cabelos pedindo desesperadamente um afago, e ela só me olhando como se não pudesse me tocar.
O silêncio ali estava dando uns vazios estranhos, daqueles de quando a gente vê alguém pela primeira vez e tem a sensação equivocada de que o silêncio é um buraco que precisa ser preenchido. Eu desejava o silêncio. Mas ficava ali olhando e falando junto dela. Deixei de lado também o abraço. Como meus braços queriam os dela, eu nunca quis tanto um abraço, pensava. Daqueles que se afunda a cabeça no outro, daqueles que a gente some no outro, esquece do tempo e o abraço vai ficando cada vez mais forte ali, ligado ao outro corpo que recebe tudo de um jeito grandioso. Mas mesmo que nós soubéssemos que soltávamos assim um ar de carinho, de carência, tinha aquele medo do toque, ela era sensível ao toque, na verdade ela era extremamente sensível, não em toda a completude da palavra sensível, mas ela era, sobretudo, sensível para os outros.
Ela estava lá, e os traços e linhas por todo o seu corpo relatavam-me muitas histórias. Algumas partes minhas apareciam por cima dos lençóis, algumas dela também, mas eu não me importava, na verdade eu fiquei admirando aquele desejo do corpo de escorregar pela roupa e aparecer e nos mostrar como éramos diferentes.
Não sei se ela percebeu, mas o vento fechou a janela num instante, e a luz do quarto diminuiu. Sentia tudo aquilo como um convite da vida, e tudo que a vida fizera mesmo durante todo aquele tempo foi nos convidar, mas ela ainda só falava e me olhava.
Eu juro que aquele dia eu desejei que a noite ficasse só do outro lado do mundo. Nós nos revelando histórias fundas, eu ia descobrindo cada vez mais, e eu constatava mais uma vez que continuava no meu interesse pelas histórias alheias, aquele meu interesse de cavar os outros, talvez tentando achar de alguma forma um lugar para mim. E eu não sabia, ainda não sei (e nunca vou mesmo saber) se ela fingia não perceber que gostava do meu cheiro ali, eu ali, e eu estava pronta, dentro, eu tinha entrado naquilo tudo, ou se ela não gostava mesmo, e por isso não via nada. Às vezes eu sentia que ela estava em outro lugar; mas não, era aqui o lugar que deveríamos estar agora.
Eu havia me despido para ela. Estava ali, nua, mas ela ainda de roupa, havia mil reticências nos separando, todas criadas por ela, e como eu quis fazer um carinho, arrebentar todos aqueles pontos, eu queria te encher de vírgulas, e quem sabe lhe dar algumas exclamações...?! E eu quis fazer um carinho, você pedia um carinho, eu via sua necessidade assim: GRANDE. Mas eu não fiz.
E a noite veio devagar, eu sentia que já era hora. A janela se abriu, e a cidade invadiu o quarto, na mesma velocidade com que ela se levantou. Quando seus pés tocaram o chão tudo aquilo acabou, aquele simples toque da pele dos péspequenoscomunhasquecombinavam e o chão frio dava um choque, tudo voltava, e eu senti na carne que tudo estava sendo destruído. E o peso de tudo, o entulho, caiu sobre mim, diretamente sobre mim. Porque o entulho dessas construções pode se espalhar, mas o peso sempre é maior para quem construiu.
Eu ia suportar esse peso depois. Agora ela se levantava e olhava para mim com um jeito de adeus que me incomodava. Eu me vesti e senti todo o peso dos calçados. Ela só me olhava e falávamos coisas sem propósito agora. Eu precisava falar para suportar a brutalidade com a qual ela ia embora.
 E a minha brutalidade de ficar.

Ficar.

Hoje sinto como se uma parte de mim tivesse ficado nos lençóis azuis, ou talvez ela tenha levado assim na bagagem, sem perceber. Ou talvez ela saiba disso e me guarde. Não sei. Sei que por mais um dia depois daquele tive seu cheiro comigo, que me esquentou na noite fria de terça feira.
Uma só coisa me incomodava e talvez me impedisse ali, mas não sei se ela se importou muito: é que sem eu ver ela passou a chave na porta, e as janelas...eram pequenas demais.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Expressão


pressão
(repressão)
pressar-me
expressar
Ex-pressão

sábado, 4 de fevereiro de 2012

haikai

sem grana, sem drama
e sem cronograma me ama
na lama ou na cama


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


caos: casos, acasos e socos


caos 
no
nu
descalço
(que saco)
eu ouso
que no caso
essa vida
é mero esboço,
sopro, e 
acaso.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Sob o peso dos meus amores

“Engraçado, porque a ponte é ligação, mas as bordas não se encontram nunca (...) acho que me refiro à distância que a gente mesmo estabelece. São barreiras colocadas propositalmente. É triste, bem triste, mas...”  - Leonilson

Um dia na internet eu achei esse site. É como se cada vez que eu entrasse lá, entrasse em mundo muito particular, que tomo como meu também...:)
http://www.itaucultural.org.br/leonilson/

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

agonia


cama vazia
rumo agudo
o que me restaria
nesse tudo desnudo
é o criado,
mudo.

como se fosse um pássaro
você veio assim
voando, voando pousou
e botou amor em mim

e eu vindo
infindo o findo
isso é lindo

Além-mundo


seco o mundo
eu seco
soco tudo

seco o profundo
eu seco e oriundo
soco o mundo

e num segundo
eu fecundo
aquele submundo

sábado, 14 de janeiro de 2012

fim de ano


Acaba-se o ano,
acaba-se a glória
e tudo que me resta por ora
é recontar a história.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Reverso (a)


Uma bela resposta, mais belo ainda o presente: para ler com o texto Avessa (o).


Resolvi que aquela noite seria diferente: tentaria ignorar o fluxo contínuo de pensamentos que nunca me deixavam em paz. Saí de casa antes do anoitecer disposta enfrentar algo fora de mim mesma.
Os sons de carros e motos eram realmente assustadores, afinal, estava acostumada a lidar com meus silêncios interiores. Como se isso não bastasse, risadas e conversas chegavam até mim e penetravam meu interior como facas. Todo aquele barulho afirmava o mundo a meu redor, lembrando-me constantemente de que não adiantava fugir. Talvez fosse covardia, mas fato era que lidar com meus próprios conflitos já era difícil de mais. Mesmo que a vontade de pessoas fosse grande, ter a mim mesma era muito mais forte, era conforto.
Porém não era conforto que eu buscava agora, caso contrário não teria saído de casa. Abri os braços e respirei fundo para que entrasse todo cheiro ocre da poluição. Até no ar a presença humana se fazia presente, inseparável. Devagar fui movendo os braços para frente, saindo de mim, abarcando o mundo em minha volta... Até que me deparei com algo. Envolvi-o. O calor de alguém me aquecia, dois corpos se faziam em um, comprimindo-se com força, ligando externos. Que fosse o abraço de um desconhecido ou apenas meus próprios braços que haviam contornado o corpo, não importava.
Só sei que quando criei coragem para abrir os olhos, não havia mais abraço. Apenas o sol se pondo atrás de um prédio. Recomecei a andar, era hora de partir, assim como os raios de luz já o faziam. Caminhava devagar, meu corpo se preparando para a vida, enquanto a noite chegava corajosa, impondo sua presença. Estava um pouco nervosa, era a primeira vez que agia dessa maneira, mas achei interessante a expectativa da fragilidade e segui em frente.
De repente eu entrei. Assim, sem pensar. Abri a porta devagar e vi o corpo dela sobre a cama, delineado pela luz fraca que entrava pela janela. Era estranho para mim ir de encontro a alguém assim. Podia fingir que sabia lidar com aquilo, mas a verdade é que estava medo.
Eu torcia para que o tempo corresse e eu pudesse acabar logo com aquilo, mas ele insistia em demorar a passar. Ela foi fechando os olhos à medida em que eu me aproximava, e permaneceu imóvel. Em nenhum momento parei para pensar sobre o que faria; era necessário apenas agir, seguir o fluxo e não parar. A pessoa que adentrou aquele quarto definitivamente não era a mesma que saiu de casa. Algo nasceu em mim naquela noite.
Não posso dizer que foi um parto sem dor. Mas não desisti, era necessário que fosse assim, que eu não planejasse, que eu não tivesse controle sobre minhas sensações. E que eu causasse sensações alheias. Era hora de me preocupar com o outro e deixar surgir em mim tudo que fosse necessário.
Enquanto caminhava pelo quarto, ouvia suas gargalhadas na cama e isso me encorajava. Em algum momento me livrei das roupas, queria parecer vulnerável, explícita. Ao mesmo tempo precisava mostrar que era capaz de estabelecer contato, que eu sentia, que eu desejava. Sentei ao lado dela segurando suas mãos entre as minhas como quem pede confiança, e prossegui. Queria transmitir para alguém toda a paz que eu gostaria de ter naquele momento. Não era necessário falar, apenas agir, não interromper, cada vez mais rápido, contínuo, intenso!
Sem perguntar a ninguém, o riso tomou conta do quarto. Gargalhávamos alto, juntas. Éramos nós, eu, a outra e aquela. Revertendo momentos presentes. Reinventando o tempo.
Em algum momento o silêncio surgiu, e pouco depois ela fechou os olhos. Eu parti, exausta. Acordei sem ninguém ao meu lado. Mas não estava mais sozinha, o fluxo contínuo de pensamentos agora se dividia na minha cabeça. O que quer que tenha nascido naquela noite, estava ali comigo, me habitando, morando em meu próprio corpo. Assustada, me dei conta de que para estar só seria necessário algo mais que me manter entre quatro paredes. Por um bom tempo, mesmo sem sair de casa, eu teria companhia.

Olga Penna.