quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

vazamento

Difícil crer que você não está
aqui olho para os pequenos orificios:
o buraco da fechadura, as frestas por onde a luz chega à casa,
no vão que fazem as tábuas no chão
vejo você derramada,
como a explosão de ondas que rebentam as pedras da costa,
limpo na parede um filete de água e
enquanto lavo a louça, te provo com a ponta dos dedos.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Café da tarde


Há a incompatibilidade.
Há a incompatibilidade e a supressão de vida.
Há a incompatibilidade, a supressão de vida e o desencontro.
Há a incompatibilidade, a supressão de vida, o desencontro e a tristeza.
Tudo pesa como o palato sobre minha língua.
Pelos cantos remexo o que é estranho antes de engolir.
Saboreio os pedaços e as migalhas que cato do prato com a ponta dos dedos, úmidos de saliva.
No fim da refeição, retiro com o fio dental um resto de amor da gengiva.

sábado, 28 de junho de 2014

26 de junho de 2014


passei a pomada delicadamente nos grandes lábios
escrevi uma carta para você
arrumei a casa
chorei
comecei a me masturbar
tentei ler Tolstoi
fui feliz
pensei em me matar várias vezes
finalmente tirei aquela poeira de debaixo da cama

domingo, 4 de maio de 2014

Agenda

desejo colocar-me ao seu lado
sobre os lençóis mais macios
desejo que você tenha
preparado seu corpo e sua voz
durante todo o dia
e furtivamente me receba
à noite desejo que quando
meu corpo encostar no seu você
me olhe nos olhos e
não negue um beijo dado
mais tarde desejo ler para você
com o mais feminino do que há
em mim e que seus ouvidos captem
a minha voz sem entendimento
de nada
desejo, com volúpia,
que nesse dia branco
você esteja fragmentada
pelos cômodos e também perpasse
um suave olhar entreabrindo
uma sutil presença
sobre seus incômodos
desejo mormente
que seja sincera mas não
é necessário que seja verdadeira
(mentiras devem ser bem contadas)

desejo que se dedique a mim
nesse dia escolhido
mas que para além se destine
a você
desejo que faça e satisfaça prazeres
escondidos, subverta desenhos do papel
nesse dia, talvez escreva no seu
corpo, mas que inscrevê-la também seja
uma tentação nesse dia que
já existe enquanto você o lê
não é preciso
que eu venha ou você vá, sobretudo 
este dia propiciará
            o encontro.

domingo, 13 de abril de 2014

Leitura

desde a carta no canto da boca
talvez à espreita da áspera espera
também os telefonemas mais tardios
os silêncios mais sinceros
as presenças mais partidas
desde o último olhar
no olho do corpo
desde a primeira ausência
tudo que resta
é este prenuncio
o corpo, que trôpego toma
fôlego
o hálito quente
ápice e queda
da absoluta retração da voz
no grito
tudo quietamente pulsa
como o ruído do ar
entrando
enquanto você tão distraidamente
suspensa
se prepara para ler

 a próxima linha

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Fui ao mar
mas deixei cair o peso
sobre os ombros

Na areia
uma concha aguarda, fechada
seu fim
a pele a espera do sol
a vida áspera pelo sal
tudo paira a mercê do mar

sobre o azul do teatro
o mar é minha memória
se perdendo
nado, quase sem fôlego
para chegar à praia
o branco das espumas
também é minha esperança
de que a próxima onda
quebre antes

Não quebrará.
Mantenho a mim mesma e a espera
    em andamento

À noite, sem fôlego
eu, que estou no mar
não chegarei à praia
eu, que estou na praia
não chegarei ao mar

Mas o poema, cansado
insiste
eco mudo, à espreita
permanece, como a concha
relógio de pulso
sem pulso
entra no mar.



terça-feira, 29 de outubro de 2013

travessia

minha mãe veio
enquanto ainda havia turbulências
na verdade,
para essas ondas que nunca cessaram
mais uma brisa

e a palavra seguia
dobrava a esquina
a palavra chegava ao poema
a esquina passada
a palavra passada
o próprio poema já passado
só a mãe não passava
e com ela, o mar
sempre navegante
e mesmo que ofegante,
sempre navegável