sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Extrínseco

Depois daquele dia eu confesso que se acentuou em mim aquela mania de abrir gavetas sem ter o que colocar, e eu sentia aquela fome aguda, aquela fome que não é vontade de comida, mas um vazio, a fraqueza que fica na gente depois de dias sem comer. E para ralar um pouco as minhas vontades eu andava pelas ruas, sempre movida a lembranças, mantendo meu olhar profundo, meu olhar me fecundava, e junto com ele aquele emaranhado de fantasias que eu necessitava, era uma necessidade de viver na invenção, eu sentia um prazer íntimo em montar fantasias que me sustentassem enquanto eu percorria cambaleante essa tal de realidade que insistia em aparecer.

Realidade ou não eu olhava para ela como se admirasse algo que estivesse muito além dali, daquele lugar. Eu não a deixava perceber o conforto que seu rosto esculpido de uma forma proporcional me trazia. Eu não a deixava perceber, mas também admirava em extremo segredo suas mãos e pés (era como uma coisa proibida). Eles também eram incrivelmente proporcionais, aliás, o corpo todo era um equilíbrio onde até as unhas se combinavam. Os pés e as mãos se comunicavam, e o corpo todo na verdade, eles me chamavam, sim, sempre tive uma admiração por extremidades, e aqueles pés pareciam muito macios, eram pequenos e se mexiam no lençol azul, aquele lençol azul que me dava uma paz, ela não sabia, mas eu adorava naquele instante, exatamente naquele instante, o jeito que ela me olhava assim por cima, deitada ali, virada para mim.
Era o fim de uma tarde de inverno e eu começava a sentir os meus pêlos se arrepiando, meu corpo reclamava do frio que fazia. Eu queria mesmo era um carinho, um aconchego, um conforto. Mas ela só me olhava e falava. Ela estava ali, deitada ao meu lado, com os lençóis azuis, o dia ficando alaranjado com o pôr do sol, seus cabelos pedindo desesperadamente um afago, e ela só me olhando como se não pudesse me tocar.
O silêncio ali estava dando uns vazios estranhos, daqueles de quando a gente vê alguém pela primeira vez e tem a sensação equivocada de que o silêncio é um buraco que precisa ser preenchido. Eu desejava o silêncio. Mas ficava ali olhando e falando junto dela. Deixei de lado também o abraço. Como meus braços queriam os dela, eu nunca quis tanto um abraço, pensava. Daqueles que se afunda a cabeça no outro, daqueles que a gente some no outro, esquece do tempo e o abraço vai ficando cada vez mais forte ali, ligado ao outro corpo que recebe tudo de um jeito grandioso. Mas mesmo que nós soubéssemos que soltávamos assim um ar de carinho, de carência, tinha aquele medo do toque, ela era sensível ao toque, na verdade ela era extremamente sensível, não em toda a completude da palavra sensível, mas ela era, sobretudo, sensível para os outros.
Ela estava lá, e os traços e linhas por todo o seu corpo relatavam-me muitas histórias. Algumas partes minhas apareciam por cima dos lençóis, algumas dela também, mas eu não me importava, na verdade eu fiquei admirando aquele desejo do corpo de escorregar pela roupa e aparecer e nos mostrar como éramos diferentes.
Não sei se ela percebeu, mas o vento fechou a janela num instante, e a luz do quarto diminuiu. Sentia tudo aquilo como um convite da vida, e tudo que a vida fizera mesmo durante todo aquele tempo foi nos convidar, mas ela ainda só falava e me olhava.
Eu juro que aquele dia eu desejei que a noite ficasse só do outro lado do mundo. Nós nos revelando histórias fundas, eu ia descobrindo cada vez mais, e eu constatava mais uma vez que continuava no meu interesse pelas histórias alheias, aquele meu interesse de cavar os outros, talvez tentando achar de alguma forma um lugar para mim. E eu não sabia, ainda não sei (e nunca vou mesmo saber) se ela fingia não perceber que gostava do meu cheiro ali, eu ali, e eu estava pronta, dentro, eu tinha entrado naquilo tudo, ou se ela não gostava mesmo, e por isso não via nada. Às vezes eu sentia que ela estava em outro lugar; mas não, era aqui o lugar que deveríamos estar agora.
Eu havia me despido para ela. Estava ali, nua, mas ela ainda de roupa, havia mil reticências nos separando, todas criadas por ela, e como eu quis fazer um carinho, arrebentar todos aqueles pontos, eu queria te encher de vírgulas, e quem sabe lhe dar algumas exclamações...?! E eu quis fazer um carinho, você pedia um carinho, eu via sua necessidade assim: GRANDE. Mas eu não fiz.
E a noite veio devagar, eu sentia que já era hora. A janela se abriu, e a cidade invadiu o quarto, na mesma velocidade com que ela se levantou. Quando seus pés tocaram o chão tudo aquilo acabou, aquele simples toque da pele dos péspequenoscomunhasquecombinavam e o chão frio dava um choque, tudo voltava, e eu senti na carne que tudo estava sendo destruído. E o peso de tudo, o entulho, caiu sobre mim, diretamente sobre mim. Porque o entulho dessas construções pode se espalhar, mas o peso sempre é maior para quem construiu.
Eu ia suportar esse peso depois. Agora ela se levantava e olhava para mim com um jeito de adeus que me incomodava. Eu me vesti e senti todo o peso dos calçados. Ela só me olhava e falávamos coisas sem propósito agora. Eu precisava falar para suportar a brutalidade com a qual ela ia embora.
 E a minha brutalidade de ficar.

Ficar.

Hoje sinto como se uma parte de mim tivesse ficado nos lençóis azuis, ou talvez ela tenha levado assim na bagagem, sem perceber. Ou talvez ela saiba disso e me guarde. Não sei. Sei que por mais um dia depois daquele tive seu cheiro comigo, que me esquentou na noite fria de terça feira.
Uma só coisa me incomodava e talvez me impedisse ali, mas não sei se ela se importou muito: é que sem eu ver ela passou a chave na porta, e as janelas...eram pequenas demais.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Expressão


pressão
(repressão)
pressar-me
expressar
Ex-pressão

sábado, 4 de fevereiro de 2012

haikai

sem grana, sem drama
e sem cronograma me ama
na lama ou na cama


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


caos: casos, acasos e socos


caos 
no
nu
descalço
(que saco)
eu ouso
que no caso
essa vida
é mero esboço,
sopro, e 
acaso.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Sob o peso dos meus amores

“Engraçado, porque a ponte é ligação, mas as bordas não se encontram nunca (...) acho que me refiro à distância que a gente mesmo estabelece. São barreiras colocadas propositalmente. É triste, bem triste, mas...”  - Leonilson

Um dia na internet eu achei esse site. É como se cada vez que eu entrasse lá, entrasse em mundo muito particular, que tomo como meu também...:)
http://www.itaucultural.org.br/leonilson/