Bunda. As duas bandas no banco.
Mulher moderna, a bunda era dela, e só. Cabia a ela decidir o que vazia; se dava,
se vestia; se mostrava. Aquela bunda, na calça, no banco. Centro da cidade,
horário de pico, hora do rush, conhecido também como as malditas seis da tarde.
Inferno contemporâneo quando todas as pessoas querem chegar ao mesmo tempo em
casa, e como há de ser percebido, com cada vez mais pressa.
Mas ela não. Fingia calma e
serena, não escutar as buzinas, ônibus, crianças saindo suadas e agitadas das
escolas. Sentada estava, em plena quarta feira, num banquinho singelo do parque
municipal. Toda aquela delicadeza quase sutil- ou melhor- despercebida mesmo
por quem passava nas latas de gente aglomerada dentro.
A blusa branca solta iluminava-se
por uma fita leve que passava na cintura. Fita vermelha, que por ou sem querer,
combinava-se audaciosamente com o all star, também vermelho, e ainda mais
vibrante, por ter sido comprado há pouco.
Sim, é que nossa personagem não é
muito de esperar. Talvez contaminada pelo espírito do mundo pós moderno, mal
põe a mão nas coisas quer usar, gastar, mostrar. Desenvolvimento sustentável
sim, para as sacolinhas plásticas.
Ajeitando o sutiã com a mão
esquerda percebia que ele a incomodava. Maldita lingerie nova! Mal esperava
para chegar a casa e dar a desejada liberdade aos seios. Já diria Mariana
Colasanti, poetiza suntuosa: “tirar o sutiã à noite quando o dia acaba e com
ele o dever dos rijos seios”. Com o incômodo, fechou o livro bruscamente – se
cansou da filosofia. Pensou em ir ao cinema mais tarde ver algum bom filme, mas
logo sentiu uma vontade enorme de chegar a casa e ver a novela das nove, colocar os pés pro alto e
ir dormir junto com tantos outros brasileiros.
Enquanto se via surpreendida pelo
próprio pensamento inútil, ia guardando o livro na bolsa. Bolsa grande, cheia
de coisas variadas, papéis, notas fiscais de compras do mês passado. Batons de
todos os tons, um rímel aqui, uma conta ali, umas moedas soltas, papel de
comida, que mulher versátil, um iogurte. Um iogurte?
Por mais estranho que pudesse
parecer, tinha sim, um iogurte na bolsa preta. Parecia bom e ainda fresco. De
súbito, lembrou que não comia desde o almoço, o que afastou qualquer
desconfiança acerca da origem do laticínio.
Destampou o pote, e aquele
alumínio rosado a lembrou da infância. Há tempos não tinha uma lembrança tão verdadeira...
Como quando sua mãe comprava bandejas coloridas, ainda suadas da geladeira do
supermercado.
E o pote de iogurte se
transformou; o líquido ganhou o mesmo sabor da infância, a mesma doçura das
tardes depois da escola. Mas o pote agora, parecia pequeno. A mulher de hoje
não é mais aquela menina. A mulher agora tem a hora do rush e é dona da própria
bunda. Assim, o líquido finda, mas a sede se mantêm.
Aborrecida, deixa o pote de lado.
Mas quando está prestes a pegar o celular, avista uma coisa que jamais seria
esquecida na infância. As bordas do pote a convidavam para a parte mais
deliciosa de todas. Como poderia ter se esquecido?
Não tinha colher. Ela olhou pros
lados, nada, nenhuma padaria aberta à vista. Crianças invadiam o parque
acompanhadas por seus pais. Não tinha colher. Alguns homens de terno
passavam. E o liquido ali, na borda; rosada a parte mais gostosa...não tinha
colher!
Colocar os dedos como quando
criança? Mas não era mais a mesma ...talvez se tentasse alcançar o iogurte com
a ponta da língua...não, isso seria ainda mais ridículo e por experiências
prévias e infantis, sabia que não daria certo.
E ela, que não tinha paciência
para esperar as coisas, encontrava-se em uma humilde decisão. Completamente
alienada se via a mercê daquela situação. O tempo parado, a cabeça latente,
odiava perder o controle. Controle e
O pote. Esperava. Aquele dia
quase corrupto. A falta ao trabalho, a reunião desmarcada com o ex marido, a
proposta de um livro ao lado. Mesmo que fuga, tudo dentro dos planos. Não o
pote.
Os dedos deslizaram rápido, ela
agitada pela situação incômoda, o líquido na língua. Garganta. Estômago. Quase
pode sentir o órgão agradecer, aliás, o corpo todo. Foi quando, abrindo os
olhos, ela se sentia, novamente, dentro do mundo. Inteira, e não pela metade.
Adorei!! Associei aos meus diversos momentos de fuga no meio de tanta gente, tanta cidade, tanto tudo! Fugas de tanta pressão para que sejamos humanos ativos, simpáticos, sociais, etc. Adorei essa bunda rsrs Feminista, como deve ser :)
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