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quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Ana C.


          Entrei na padaria, por volta das nove da manhã, bem entre a pequena pausa entre uma matéria e outra, mas dessa vez ainda pensando que eu não havia concluído a primeira e até a última hora do dia eu deveria enviar três notícias para a redação o que se somava a nenhuma ideia de que forma trabalhar o fato de que uma mulher perdeu o filho afogado na praia que não tinha salva-vidas por falta de verba governamental. Enfim, como sempre entrei na padaria, algo me remeteu a outras tantas notícias que já tinha escrito até ali, desta vez foram as janelas tortas, o vermelho do ketchup, os cigarros entre os dedos daqueles que fumavam enquanto tomavam o sagrado café da manhã. Naquela época as pessoas ainda podiam fumar dentro dos lugares, o que era a coisa mais comum e óbvia. Mas quando entrei na padaria o que me chamou de fato a atenção depois desses milésimos de segundos de curta duração que minha percepção geral acerca do ambiente daquela manhã conseguira apurar foi um papel branco, bem dobrado, mas que alguém claramente tentara amassar.
         Fui até o freezer, peguei uma bebida e me dirigi ao balcão. Sentei-me não muito longe do papel que reluzia na bancada de metal. Um pão com queijo, por favor, a mulher estava na cozinha, vai querer pão de sal mesmo? - ela disse se virando quando percebeu que se tratava do mesmo pedido que ela recebia quase todas as manhãs por anos - ah é você seu Gabriel! Me desculpa hoje não sei o que me deu que estou cá com a cabeça nas nuvens, até o seu Manoel já me deu um berro e olha que eu fui funcionária do mês hein seu Gabriel - aí já me deixei distrair, enquanto ela falava do filho que tinha finalmente passado no  vestibular e agora ia estudar e crescer na vida. Já estava acostumada, sabia que eu sempre a ouvia, ainda mais agora, confortado por saber que meu pedido não seria confundido nem atrasado, o queijo estaria no ponto exato de derretimento com o pão escolhido a dedo e apenas uma passada de manteiga.
         Enquanto ela se virava para fazer o pão com manteiga me peguei olhando-a por trás. Tentei me desviar para o bilhete que de fato ainda me atordoava, mas algo me incomodava naquela mulher que há mais ou menos cinco anos eu olhava todos os dias, aquela mulher de meia idade já mãe de três filhos e até um pouco gorda, eu nunca havia reparado em suas coxas firmes provavelmente bem trabalhadas pelo serviço doméstico, e a bunda grande começando já onde se amarrava o avental, porque nunca a havia reparado, era até bem formada, as formas assentavam com os olhos grandes e pretos. Enquanto imaginava também seus peitos agora escondidos pelo avental me vinha à cabeça uma coisa bem excêntrica, mas eu nem queria mesmo olhar, e não é mesmo assim às vezes nos pegamos pensando asneiras apesar de não serem mais que humanas minhas asneiras e até estavam bem escondidas onde eu gostava de guardá-las, onde ninguém podia ver, enquanto os seios suavam no calor do fogão, ela se soprava, inclinava o queixo devagar para o decote e fazia um bico de leve sem que ninguém percebesse, exceto eu enquanto esperava meu pão, meu queijo, feitos pelas mesmas mãos que agora juntavam os cabelos - como está quente hoje hein seu Gabriel- respondi que sim Lia, há tanto tempo não faz calor assim aqui, minhas mãos também suavam tirei-as do balcão limpei na calça, as marcas no metal suado, limpei, disfarcei, ela voltava com o prato, meu café da manhã de todo dia ela se inclinou um pouco para servir, desviei o olhar da pele, cai no bilhete branco.
         Lia não tinha percebido que alguém deixava um bilhete? Justo ela tão atenciosa, tão maternal com aquele lugar e as pessoas que ali todos os dias passavam e esquentavam as cadeiras, o barulho do caixa meio enguiçado a moça do caixa - cada semana uma diferente, pois sempre alguém roubava algo- batia para soltar, contava o dinheiro, as moedas caiam nos bolsos vazios, nas bolsas grandes, assim como eu agora cai nos seios de Lia e cairia também no papel branco. Puxei com força e sem ninguém ver, coloquei-o eu meu bolso. Pouco antes de terminar o pão, peguei o papel e li os períodos mais curtos da minha vida, com uma letra até bem comum: “Fui embora Bruno, não me procure. É impossível viver assim. Ana C.”.
         Quando li aquelas palavras duras percebi que elas pareciam ainda mais poucas quando o branco do papel se assemelhava ao vazio que senti lendo-as, quanto tempo demoraria até que elas crescessem e ocupassem todo o papel, de forma que Bruno não aguentasse mais e jogasse tudo fora, roupa bolsa mala pente cd livro carta telefone escova de dente toalha fronha do travesseiro com cheiro, talvez todo o resto da roupa de cama. As palavras ressoavam em minha mente “não me procure mais não me procure mais não me procure mais não me procure mais”... como se fossem infindas, como se decretassem todo o fim das coisas.
         -seu Gabriel, vai querer o cafezinho pra levar? Escondi o bilhete branco rapidamente e assustado respondi que sim, foi então que Lia soltou uma - é seu Gabriel, o senhor também tá avoado hoje né? Preocupa não que é o tempo - eu nem concordei nem mexi, eu fiquei me perguntando que dia mais inóspito para se deixar alguém, um dia quente desses de ter que sair de casa pra aliviar o mormaço.
Pensava em Ana C. Pensava em Bruno. Pensava na minha ex mulher, quando eu a deixei e simplesmente sai. Nunca passou pela minha cabeça deixar um bilhete nem nunca consegui tamanha sinceridade. Ana C. de fato deveria ser uma pessoa muito sincera, talvez esse tal de Bruno fosse mesmo um bundão ou quem sabe, sei que as palavras continuavam, e havia um ritmo dentro de mim que repetia não me procure mais, como já ouvi tantas vezes na vida, tenho trauma dessa frase, pensei enquanto catava as migalhas de pão no prato, tenho trauma dessas pessoas que se vão e de como eu também posso ser uma delas, de como eu também posso senti-las aqui.
           Desde então passei os dias procurando Ana C. pelas ruas, e toda vez que via uma moça parada no ponto esperando o ônibus, ou na praia admirando o pôr do sol, na verdade todas as moças sozinhas, eu via Ana C.. Procurar Ana fez transfigurar em mim uma obsessão, mais do que olhar agora para os peitos de Lia todos os dias e repensar e repensar em porque continuava a fazê-lo se eles eram tortos, sem encontrar nunca uma resposta, também procurava Ana C. em todas as moças do Rio e as descobria sozinhas. Me dava um aperto no peito como se a solidão fosse mesmo algo tão assustador e tão indesejável. As moças que saiam das boates, depois de vários shows já perdidas sem os seus cheiros, cheiravam a suor e a uma grande mistura de perfumes masculinos, eram tão sozinhas, será que Ana C. cheirava assim. E isso continuava como continuou por tanto tempo, mesmo quando estava com outras mulheres, quando esses meus conflitos eram jorrados em todas elas, algumas engoliam sem medo todas as minhas inquietações pulsantes e eu as admirava pela coragem de tantas vezes se deixarem amar tão fácil, o que até conferia certa leveza ao peso que tinha para mim a palavra amor.
         Menores sentimentos ou não, conferi a Ana C. uma significância que transbordava atordoadamente todos os meus sentidos. Os mesmos sentidos que amavam Ana C. olhavam para Lia, escreviam matérias sobre imposto de renda e até transitavam por mim enquanto eu transava com a vizinha antes do trabalho dela, antes do meu.
         Com o tempo a memória foi me esquecendo. Me perdi; como uma criança, o meu ontem, hoje e amanhã causava estranhamento nas pessoas. Mas para mim tudo parecia estar perfeitamente ordenado. Exceto quando esquecia onde havia deixado o bilhete de Ana C. que eu ainda guardava. Como a memória poderia ter me esquecido tão bem! O bilhete sempre estava no bolso esquerdo frontal da calça. Ela sempre esteve lá.
         Ontem fui à padaria. Lia não trabalha mais lá; descobri anos depois que tinha câncer de mama, e por isso seus seios eram tortos - o médico era ruim, era tudo o que Lia podia pagar e ele cagou o serviço- me contou a moça do caixa, agora já uma senhora, no mesmo dia em que Lia morreu. A moça não prosseguiu no trabalho porque era honesta; o padeiro confessou-me que a apanhou roubando um par de vezes, mas desistiu de puni-la, pois já perdera a paciência com gente jovem. Acreditei na hora, mas mais tarde figurei o verdadeiro estímulo do emprego da moça. Vi o padeiro saindo dá área de serviço, o cinto arriado, ela voltando para o balcão, passava batom.
         Quando eu pagava o café, a mulher do caixa me deu um sorriso e disse que iria se casar na semana que vem, antes de eu esboçar qualquer reação, ela se adiantou - mas não pensa que eu era encalhada não viu seu Gabriel? Arrumei noivo cedo. É que o danado do Bruno estava esperando a mãe dele voltar depois de uma briga que eles tiveram há anos. Ela era meio doida sabe? Como ela nunca mais voltou, eu falei que se ele não casasse de vez eu ia embora - olhei assustado para ela quando ela me disse ainda- se a mãe dele é cabeça dura eu também sou, deve ser coisa de nome mesmo.
         Hoje vim para casa pensando que o nome da caixa era Ana, me lembro pelo crachá que ela pôs só pra mim; assim não ficaria constrangido caso me deslembrasse. Não sei bem por que, mas esse nome me remete a alguma coisa. Onde está aquele papel que sempre procuro...?
         É que ontem entrei na padaria, por volta das nove da manhã, bem entre a pequena pausa entre uma matéria e outra, mas dessa vez ainda pensando que não conclui a primeira e até a última hora do dia eu tinha que enviar três notícias para a redação o que se somava à nenhuma ideia de como trabalhar o fato de que uma mulher perdeu o filho ...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

iogurte


  Bunda. As duas bandas no banco. Mulher moderna, a bunda era dela, e só. Cabia a ela decidir o que vazia; se dava, se vestia; se mostrava. Aquela bunda, na calça, no banco. Centro da cidade, horário de pico, hora do rush, conhecido também como as malditas seis da tarde. Inferno contemporâneo quando todas as pessoas querem chegar ao mesmo tempo em casa, e como há de ser percebido, com cada vez mais pressa.
Mas ela não. Fingia calma e serena, não escutar as buzinas, ônibus, crianças saindo suadas e agitadas das escolas. Sentada estava, em plena quarta feira, num banquinho singelo do parque municipal. Toda aquela delicadeza quase sutil- ou melhor- despercebida mesmo por quem passava nas latas de gente aglomerada dentro.
  A blusa branca solta iluminava-se por uma fita leve que passava na cintura. Fita vermelha, que por ou sem querer, combinava-se audaciosamente com o all star, também vermelho, e ainda mais vibrante, por ter sido comprado há pouco.
  Sim, é que nossa personagem não é muito de esperar. Talvez contaminada pelo espírito do mundo pós moderno, mal põe a mão nas coisas quer usar, gastar, mostrar. Desenvolvimento sustentável sim, para as sacolinhas plásticas.
  Ajeitando o sutiã com a mão esquerda percebia que ele a incomodava. Maldita lingerie nova! Mal esperava para chegar a casa e dar a desejada liberdade aos seios. Já diria Mariana Colasanti, poetiza suntuosa: “tirar o sutiã à noite quando o dia acaba e com ele o dever dos rijos seios”. Com o incômodo, fechou o livro bruscamente – se cansou da filosofia. Pensou em ir ao cinema mais tarde ver algum bom filme, mas logo sentiu uma vontade enorme de chegar a casa e ver  a novela das nove, colocar os pés pro alto e ir dormir junto com tantos outros brasileiros.
  Enquanto se via surpreendida pelo próprio pensamento inútil, ia guardando o livro na bolsa. Bolsa grande, cheia de coisas variadas, papéis, notas fiscais de compras do mês passado. Batons de todos os tons, um rímel aqui, uma conta ali, umas moedas soltas, papel de comida, que mulher versátil, um iogurte. Um iogurte?
  Por mais estranho que pudesse parecer, tinha sim, um iogurte na bolsa preta. Parecia bom e ainda fresco. De súbito, lembrou que não comia desde o almoço, o que afastou qualquer desconfiança acerca da origem do laticínio.
  Destampou o pote, e aquele alumínio rosado a lembrou da infância. Há tempos não tinha uma lembrança tão verdadeira... Como quando sua mãe comprava bandejas coloridas, ainda suadas da geladeira do supermercado.
  E o pote de iogurte se transformou; o líquido ganhou o mesmo sabor da infância, a mesma doçura das tardes depois da escola. Mas o pote agora, parecia pequeno. A mulher de hoje não é mais aquela menina. A mulher agora tem a hora do rush e é dona da própria bunda. Assim, o líquido finda, mas a sede se mantêm.
  Aborrecida, deixa o pote de lado. Mas quando está prestes a pegar o celular, avista uma coisa que jamais seria esquecida na infância. As bordas do pote a convidavam para a parte mais deliciosa de todas. Como poderia ter se esquecido?
  Não tinha colher. Ela olhou pros lados, nada, nenhuma padaria aberta à vista. Crianças invadiam o parque acompanhadas por seus pais. Não tinha colher. Alguns homens de terno passavam. E o liquido ali, na borda; rosada a parte mais gostosa...não tinha colher!
  Colocar os dedos como quando criança? Mas não era mais a mesma ...talvez se tentasse alcançar o iogurte com a ponta da língua...não, isso seria ainda mais ridículo e por experiências prévias e infantis, sabia que não daria certo.
  E ela, que não tinha paciência para esperar as coisas, encontrava-se em uma humilde decisão. Completamente alienada se via a mercê daquela situação. O tempo parado, a cabeça latente, odiava perder o controle. Controle e
  O pote. Esperava. Aquele dia quase corrupto. A falta ao trabalho, a reunião desmarcada com o ex marido, a proposta de um livro ao lado. Mesmo que fuga, tudo dentro dos planos. Não o pote.
  Os dedos deslizaram rápido, ela agitada pela situação incômoda, o líquido na língua. Garganta. Estômago. Quase pode sentir o órgão agradecer, aliás, o corpo todo. Foi quando, abrindo os olhos, ela se sentia, novamente, dentro do mundo. Inteira, e não pela metade.