Entrei na padaria, por volta das nove da manhã, bem entre a
pequena pausa entre uma matéria e outra, mas dessa vez ainda pensando que eu
não havia concluído a primeira e até a última hora do dia eu deveria enviar três
notícias para a redação o que se somava a nenhuma ideia de que forma trabalhar
o fato de que uma mulher perdeu o filho afogado na praia que não tinha
salva-vidas por falta de verba governamental. Enfim, como sempre entrei na
padaria, algo me remeteu a outras tantas notícias que já tinha escrito até ali,
desta vez foram as janelas tortas, o vermelho do ketchup, os cigarros entre os
dedos daqueles que fumavam enquanto tomavam o sagrado café da manhã. Naquela
época as pessoas ainda podiam fumar dentro dos lugares, o que era a coisa mais
comum e óbvia. Mas quando entrei na padaria o que me chamou de fato a atenção
depois desses milésimos de segundos de curta duração que minha percepção geral
acerca do ambiente daquela manhã conseguira apurar foi um papel branco, bem
dobrado, mas que alguém claramente tentara amassar.
Fui até o
freezer, peguei uma bebida e me dirigi ao balcão. Sentei-me não muito longe do
papel que reluzia na bancada de metal. Um pão com queijo, por favor, a mulher
estava na cozinha, vai querer pão de sal mesmo? - ela disse se virando quando
percebeu que se tratava do mesmo pedido que ela recebia quase todas as manhãs
por anos - ah é você seu Gabriel! Me desculpa hoje não sei o que me deu que
estou cá com a cabeça nas nuvens, até o seu Manoel já me deu um berro e olha que
eu fui funcionária do mês hein seu Gabriel - aí já me deixei distrair, enquanto
ela falava do filho que tinha finalmente passado no vestibular e agora ia estudar e crescer na
vida. Já estava acostumada, sabia que eu sempre a ouvia, ainda mais agora, confortado
por saber que meu pedido não seria confundido nem atrasado, o queijo estaria no
ponto exato de derretimento com o pão escolhido a dedo e apenas uma passada de
manteiga.
Enquanto ela
se virava para fazer o pão com manteiga me peguei olhando-a por trás. Tentei me
desviar para o bilhete que de fato ainda me atordoava, mas algo me incomodava
naquela mulher que há mais ou menos cinco anos eu olhava todos os dias, aquela
mulher de meia idade já mãe de três filhos e até um pouco gorda, eu nunca havia
reparado em suas coxas firmes provavelmente bem trabalhadas pelo serviço
doméstico, e a bunda grande começando já onde se amarrava o avental, porque
nunca a havia reparado, era até bem formada, as formas assentavam com os olhos
grandes e pretos. Enquanto imaginava também seus peitos agora escondidos pelo
avental me vinha à cabeça uma coisa bem excêntrica, mas eu nem queria mesmo
olhar, e não é mesmo assim às vezes nos pegamos pensando asneiras apesar de não
serem mais que humanas minhas asneiras e até estavam bem escondidas onde eu
gostava de guardá-las, onde ninguém podia ver, enquanto os seios suavam no
calor do fogão, ela se soprava, inclinava o queixo devagar para o decote e
fazia um bico de leve sem que ninguém percebesse, exceto eu enquanto esperava
meu pão, meu queijo, feitos pelas mesmas mãos que agora juntavam os cabelos -
como está quente hoje hein seu Gabriel- respondi que sim Lia, há tanto tempo
não faz calor assim aqui, minhas mãos também suavam tirei-as do balcão limpei
na calça, as marcas no metal suado, limpei, disfarcei, ela voltava com o prato,
meu café da manhã de todo dia ela se inclinou um pouco para servir, desviei o
olhar da pele, cai no bilhete branco.
Lia não tinha
percebido que alguém deixava um bilhete? Justo ela tão atenciosa, tão maternal
com aquele lugar e as pessoas que ali todos os dias passavam e esquentavam as
cadeiras, o barulho do caixa meio enguiçado a moça do caixa - cada semana uma
diferente, pois sempre alguém roubava algo- batia para soltar, contava o
dinheiro, as moedas caiam nos bolsos vazios, nas bolsas grandes, assim como eu
agora cai nos seios de Lia e cairia também no papel branco. Puxei com força e
sem ninguém ver, coloquei-o eu meu bolso. Pouco antes de terminar o pão, peguei
o papel e li os períodos mais curtos da minha vida, com uma letra até bem
comum: “Fui embora Bruno, não me procure. É impossível viver assim. Ana C.”.
Quando li
aquelas palavras duras percebi que elas pareciam ainda mais poucas quando o
branco do papel se assemelhava ao vazio que senti lendo-as, quanto tempo
demoraria até que elas crescessem e ocupassem todo o papel, de forma que Bruno
não aguentasse mais e jogasse tudo fora, roupa bolsa mala pente cd livro carta
telefone escova de dente toalha fronha do travesseiro com cheiro, talvez todo o
resto da roupa de cama. As palavras ressoavam em minha mente “não me procure
mais não me procure mais não me procure mais não me procure mais”... como se
fossem infindas, como se decretassem todo o fim das coisas.
-seu Gabriel,
vai querer o cafezinho pra levar? Escondi o bilhete branco rapidamente e
assustado respondi que sim, foi então que Lia soltou uma - é seu Gabriel, o
senhor também tá avoado hoje né? Preocupa não que é o tempo - eu nem concordei
nem mexi, eu fiquei me perguntando que dia mais inóspito para se deixar alguém,
um dia quente desses de ter que sair de casa pra aliviar o mormaço.
Pensava em Ana C. Pensava em Bruno. Pensava na minha ex
mulher, quando eu a deixei e simplesmente sai. Nunca passou pela minha cabeça
deixar um bilhete nem nunca consegui tamanha sinceridade. Ana C. de fato
deveria ser uma pessoa muito sincera, talvez esse tal de Bruno fosse mesmo um
bundão ou quem sabe, sei que as palavras continuavam, e havia um ritmo dentro
de mim que repetia não me procure mais, como já ouvi tantas vezes na vida,
tenho trauma dessa frase, pensei enquanto catava as migalhas de pão no prato,
tenho trauma dessas pessoas que se vão e de como eu também posso ser uma delas,
de como eu também posso senti-las aqui.
Desde
então passei os dias procurando Ana C. pelas ruas, e toda vez que via uma moça
parada no ponto esperando o ônibus, ou na praia admirando o pôr do sol, na
verdade todas as moças sozinhas, eu via Ana C.. Procurar Ana fez transfigurar
em mim uma obsessão, mais do que olhar agora para os peitos de Lia todos os
dias e repensar e repensar em porque continuava a fazê-lo se eles eram tortos,
sem encontrar nunca uma resposta, também procurava Ana C. em todas as moças do
Rio e as descobria sozinhas. Me dava um aperto no peito como se a solidão fosse
mesmo algo tão assustador e tão indesejável. As moças que saiam das boates,
depois de vários shows já perdidas sem os seus cheiros, cheiravam a suor e a
uma grande mistura de perfumes masculinos, eram tão sozinhas, será que Ana C.
cheirava assim. E isso continuava como continuou por tanto tempo, mesmo quando
estava com outras mulheres, quando esses meus conflitos eram jorrados em todas
elas, algumas engoliam sem medo todas as minhas inquietações pulsantes e eu as
admirava pela coragem de tantas vezes se deixarem amar tão fácil, o que até
conferia certa leveza ao peso que tinha para mim a palavra amor.
Menores
sentimentos ou não, conferi a Ana C. uma significância que transbordava
atordoadamente todos os meus sentidos. Os mesmos sentidos que amavam Ana C.
olhavam para Lia, escreviam matérias sobre imposto de renda e até transitavam
por mim enquanto eu transava com a vizinha antes do trabalho dela, antes do meu.
Com o tempo a
memória foi me esquecendo. Me perdi; como uma criança, o meu ontem, hoje e
amanhã causava estranhamento nas pessoas. Mas para mim tudo parecia estar
perfeitamente ordenado. Exceto quando esquecia onde havia deixado o bilhete de
Ana C. que eu ainda guardava. Como a memória poderia ter me esquecido tão bem!
O bilhete sempre estava no bolso esquerdo frontal da calça. Ela sempre esteve
lá.
Ontem fui à
padaria. Lia não trabalha mais lá; descobri anos depois que tinha câncer de
mama, e por isso seus seios eram tortos - o médico era ruim, era tudo o que Lia
podia pagar e ele cagou o serviço- me contou a moça do caixa, agora já uma
senhora, no mesmo dia em que Lia morreu. A moça não prosseguiu no trabalho
porque era honesta; o padeiro confessou-me que a apanhou roubando um par de
vezes, mas desistiu de puni-la, pois já perdera a paciência com gente jovem.
Acreditei na hora, mas mais tarde figurei o verdadeiro estímulo do emprego da
moça. Vi o padeiro saindo dá área de serviço, o cinto arriado, ela voltando
para o balcão, passava batom.
Quando eu pagava
o café, a mulher do caixa me deu um sorriso e disse que iria se casar na semana
que vem, antes de eu esboçar qualquer reação, ela se adiantou - mas não pensa
que eu era encalhada não viu seu Gabriel? Arrumei noivo cedo. É que o danado do
Bruno estava esperando a mãe dele voltar depois de uma briga que eles tiveram
há anos. Ela era meio doida sabe? Como ela nunca mais voltou, eu falei que se
ele não casasse de vez eu ia embora - olhei assustado para ela quando ela me
disse ainda- se a mãe dele é cabeça dura eu também sou, deve ser coisa de nome
mesmo.
Hoje vim para
casa pensando que o nome da caixa era Ana, me lembro pelo crachá que ela pôs só
pra mim; assim não ficaria constrangido caso me deslembrasse. Não sei bem por
que, mas esse nome me remete a alguma coisa. Onde está aquele papel que sempre
procuro...?
É que ontem
entrei na padaria, por volta das nove da manhã, bem entre a pequena pausa entre
uma matéria e outra, mas dessa vez ainda pensando que não conclui a primeira e
até a última hora do dia eu tinha que enviar três notícias para a redação o que
se somava à nenhuma ideia de como trabalhar o fato de que uma mulher perdeu o
filho ...
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